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Nova Rota da Seda: Brasil escolhe estratégia para entrar no projeto da China sem melindrar EUA

Brasília busca elevar parceria com Pequim sem aderir formalmente à Iniciativa Cinturão e Rota na tentativa de equilibrar relações com Washington; entenda como a linguagem impacta na diplomacia

O Brasil optou por uma sinergia ao invés de uma adesão formal à Nova Rota da Seda, projeto de infraestrutura global liderado pela China. Mas, afinal, qual é a diferença, na prática?

Essa decisão foi comunicada pelo assessor especial para política externa do presidente Lula, ex-chanceler Celso Amorim, em entrevista ao jornal O Globo desta segunda-feira (28).

No mesmo dia, em conversa com o portal O Cafezinho, Amorim ressaltou para o editor Miguel do Rosário – âncora do Jornal da Fórum, na TV Fórum – que o Brasil não está repudiando a Nova Rota da Seda.

“O embaixador até mostrou uma certa irritação com as interpretações enviesadas, tentando associar a sua entrevista e suas palavras como um jogo de palavras ambíguo, que esconderia um realinhamento político do governo brasileiro com os Estados Unidos”, escreveu Rosário.

Ambiguidade calculada

A irritação de Amorim mostra o quanto a linguagem é importante para a diplomacia. Nesse caso em específico, o ex-chanceler recorreu à ambiguidade calculada ao dizer que o Brasil vai entrar na Nova Rota da Seda não por meio de adesão e sim de sinergia.

Diplomatas frequentemente usam frases intencionalmente ambíguas para manter o diálogo aberto e permitir que diferentes partes interpretem as declarações de acordo com seus próprios interesses. A ambiguidade pode ajudar a evitar confrontos diretos ou impasses. Ou a criar ruídos.

Qual é a diferença entre sinergia e adesão?

No dicionário, sinergia é um substantivo feminino que significa ação simultânea; esforço coletivo; cooperação. Adesão também é substantivo feminino e quer dizer ação ou efeito de aderir, de apoiar e de passar a fazer parte de alguma coisa.

No campo diplomático, a escolha do Brasil por sinergia ao invés de adesão formal à Nova Rota da Seda reflete uma abordagem mais flexível e pragmática para aproveitar oportunidades econômicas sem comprometer-se integralmente a um projeto geopolítico liderado por outra potência. 

A opção por sinergia sinaliza que o Brasil busca manter sua autonomia no cenário internacional, especialmente diante de disputas entre grandes potências, como Estados Unidos e China. 

Com esse vocabulário, Brasília pode se beneficiar da cooperação econômica com a China sem tomar partido de maneira explícita em um projeto que tem implicações geopolíticas globais. Isso também permite ao Brasil manter boas relações com outras nações, como os países europeus, que têm mostrado cautela ou oposição à Nova Rota da Seda.

Outro aspecto dessa escolha é de que uma adesão formal à Iniciativa do Cinturão e Rota poderia aumentar a dependência financeira do Brasil em relação à China, especialmente se o país assumisse empréstimos vultosos para financiar projetos de infraestrutura chineses. 

Armadilha da dívida

Essa leitura precavida e a não adesão e sim uma sinergia do Brasil à Nova Rota da Seda Brasil remete à tese da “armadilha da dívida” promovida por Washington e reforçada pelas declarações feitas pela representante de Comércio dos Estados Unidos, Katherine Tai, em passagem pelo Brasil no dia 23 de outubro.

A China rebateu com firmeza os comentários feitos por Tai. A diplomacia chinesa classificou como “irresponsáveis” as observações da representante dos EUA a respeito da possível adesão do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota.

Sobre a entrevista de Amorim, até esta terça-feira (29), a diplomacia chinesa não havia se pronunciado.

LEIA TAMBÉM: China rebate EUA sobre entrada do Brasil na Nova Rota da Seda

Recado da China

Ilustração Global Times

Nesta segunda-feira (28), o jornal chinês Global Times, que frequentemente reflete as posições oficiais do governo da China, publicou um editorial que aborda a mentalidade ligada à “Doutrina Monroe” e sugere que os EUA ainda veem a América Latina como seu “quintal geopolítico”.

“Atualmente, os EUA estão tentando construir um ‘pequeno quintal, cerca alta’ contra a China no Brasil e em outros países da América Latina”, escreve o jornal.

O texto relembra outros exemplos de interferência de Washington, como a visita da General Laura Richardson, que também alertou sobre a BRI e os riscos para a soberania dos países que aderem ao projeto. 

Global Times ressalta que a China já firmou acordos de adesão à Nova Rota da Seda com mais de 150 países, sem que suas soberanias fossem prejudicadas.

Atualmente, o Brasil ainda não fez adesão formal à BRI e sinaliza para uma sinergia. O jornal chinês destaca que o presidente Lula expressou interesse, alinhando a iniciativa às estratégias de reindustrialização e integração sul-americana. 

Enquanto os EUA tentam conter a influência chinesa na América Latina, as nações da região, incluindo o Brasil, não desejam escolher entre China e EUA e preferem cooperar com ambos para promover o desenvolvimento.

Doutrina Monroe na atualidade 

A Doutrina Monroe citada pelo Global Times, embora proclamada em 1823 para afastar a influência europeia nas Américas, continua a influenciar a política externa dos Estados Unidos na América Latina em um formato modernizado. 

Hoje, os EUA utilizam os princípios da doutrina para preservar sua influência na região, especialmente em resposta à crescente presença da China e da Rússia. A expansão da Iniciativa do Cinturão e Rota da China e as parcerias militares da Rússia com países como a Venezuela são vistas como desafios à hegemonia de Washington.

Embora o discurso imperialista direto da Doutrina Monroe tenha sido abandonado, a abordagem dos EUA em relação à segurança e estabilidade na América Latina mantém traços dessa doutrina, especialmente por meio de pressões diplomáticas e econômicas. 

Os Estados Unidos buscam conter a influência de potências globais, enquanto países latino-americanos, como o Brasil e o México, resistem, diversificando suas alianças com outros blocos, como o BRICS, e com potências como a China e a União Europeia.

Assim, a Doutrina Monroe, em sua forma moderna, reflete um esforço contínuo dos EUA para manter sua posição de liderança na América Latina, apesar das mudanças no cenário geopolítico global.

Vocabulário diplomático

Durante missão à China na semana passada, da qual o ex-chanceler Amorim fez parte, fontes que acompanharam a viagem relatam que a delegação brasileira e chinesa ficou das 7h às 22h em uma sala para chegar a um texto final. Sem sucesso. 

LEIA TAMBÉM: Brasil mais perto de entrar na Nova Rota da Seda?

Até que em algum momento, Brasília chegou à expressão sinergia para substituir por adesão, vocalizado nas entrevistas concedidas por Amorim. Não há informações se a expressão foi acordada com Pequim.

Esse episódio lembra o peso do vocabulário nas negociações internacionais, como o ocorrido na Cúpula da Commonwealth, em 1985, que resultou no Acordo de Nassau. Naquele contexto, a então primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, resistiu a pressões para impor sanções severas contra o regime do apartheid na África do Sul, moldando o texto final com uma abordagem cautelosa e seletiva.

Diplomacia de Thatcher

Durante as negociações para o Acordo de Nassau, Thatcher vetou termos como “sanções econômicas totais” e “isolamento total”, preferindo a expressão “sanções seletivas” e defendendo o “engajamento construtivo” com o regime sul-africano. A escolha dessas expressões permitiu que o Reino Unido mantivesse uma postura flexível, evitando compromissos vinculativos.

Thatcher se opôs a sanções amplas, temendo o impacto negativo na população sul-africana e na economia global. Ela rejeitou termos que sugerissem o completo isolamento da África do Sul, defendendo a manutenção de canais de diálogo.

A “dama de ferro” vetou a proposta de proibir completamente a exportação de petróleo para a África do Sul, considerando o impacto econômico. A primeira-ministra preferiu que as sanções fossem voluntárias, dando mais flexibilidade ao Reino Unido.

No final, o Acordo de Nassau adotou um compromisso diplomático moderado, com a implementação de sanções seletivas que incluíam a proibição de novos investimentos e um embargo de armas. O termo “engajamento construtivo”, defendido por Thatcher, prevaleceu como um elemento-chave do acordo, reforçando a ideia de diálogo ao invés de punições severas.

Esse exemplo, assim como o recente uso de “sinergia” nas negociações Brasil-China, mostra como a escolha cuidadosa de palavras pode moldar decisões estratégicas nas relações internacionais, permitindo maior flexibilidade e controle sobre os resultados.

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